28 novembro, 2010

Mariza

-Mas quem disse que quero ouvir qualquer coisa que tem a dizer?
Foi o que todos puderam ouvir de Mariza da sala que distava alguns metros até onde todos se encontravam. Preocupação maior e primeira é que Mariza não gritava. Segundo, que não era de seu feitio discordar da ordem imposta pelas circunstâncias humanas de ouvir. Terceiro, Mariza era sempre interessada em tudo, por que não queria ouvir?
O mais impressionante na tarde em que as paredes já estavam quentes o suficiente e a cor laranja se prolongava até o cômodo de onde se podia ouvir Mariza, era que o eco de sua frase a deixava ainda mais só que o imaginado. 
O outro a quem se referia sequer interferiu no movimento do vento que traz e propaga os sons de indignação ou o fungo de fermentação qualquer que se dá dentro de nós e de nossas vontades quando ares como esses trazem negações tão grosseiras.
Sueli, a filha cheia de ímpeto de iniciar e de conter as necessidades do ímpeto, de brincar e maquiar verdade com mais verdade ainda, essa menina doce e estranha ao mesmo tempo, que tinha manchinhas pelo corpo, sabia o que fazer, já que seu tempo permitia qualquer coisa. Entrou.
Não havia, de fato, ninguém ali.
Fechando a sala solenemente, a pequena vira-se para o público que espera suas conclusões e diz:
-Silêncio! Que a mamãe não se perca também...
E com um sorriso desses que prevêem o que já se viu como algo que ainda chega de surpresa, saiu do recinto, partiu para o seu balanço de costume e passou a tarde toda remoendo.
O irmão, então, pensou sobre a menina e achou que também pudesse entrar. Abriu a porta como se tivesse o direito de saber sobre o que tanto gritava sua irmã. Dando os olhos com os dela, remexendo assim como se não soubesse nada, teve o momento em que estava igualmente perdido no caminho de tudo o que ela disse outras vezes, e como se reconhecesse uma previsão antiga, voltou ao centro dos que os esperavam. Não disse qualquer palavra.
Sentou-se no seu lugar predileto de fumar, montou seu cigarro e fumou profundamente.
Os outros homens ficaram com medo. As outras mulheres também. As outras mulheres tinham uma curiosidade velada. Os outros homens também.
Ivete, a mais velha começou a se perguntar se ninguém ali tinha se envergonhado de continuar esperando pela resposta tão silenciosamente e com tanta calma. Marcelo, um quase desconhecido, que caminhava pelo lado da casa vez em quando, perguntou se essa não deveria ser a forma correta. Se a resposta esperada não era um grito qualquer. Jaime, não se pronunciou, mas olhou todos um a um , algo que nem todos perceberam. Aline, riu-se um pouco e com medo do que pudessem pensar, tratou de encontrar um pretexto comum para a risada comum. Não disse nada e, providencialmente, retirou do bolso uma borboleta, ela dançou um pouco pelo vazio dos silêncios daquele lugar e todos entenderam seu motivo, mas nenhum outro membro riu com ela.
Mariza estava cansada, todos sabiam, daquele lugar. E o escritório já não era bom para ficar perdido. Mas Mariza estava.
Sueli, a primeira menina, já havia parado o balanço. O irmão também havia voltado ao meio dos outros todos que não arredaram o pé de canto algum até o final da tarde em que o sol já morto deixa um espaço fosco para a chegada das estrelas. Estavam ali em todos os mesmos lugares de senpre. Manoel em seu sofá, Antônio sob uma luminária alta que havia no canto. Julia continuava esperando que alguém pedisse, com a sutileza dessa ordem, água ou café ou suco do que pudesse ser feito. Todos queriam sair e encontrar a razão do grito de Mariza.

É preciso mais que vontade de sair de qualquer lugar.
Os três primeiros ainda riam, calavam ou balançavam algum brinquedo qualquer de corda e árvore e sombra. Ela ainda estava presa no escritório onde o som de seu grito ecoava insistente, agora, transformado em silêncio. E quando o dia chegou, quiseram voltar todos aos seus afazeres. Voltaram.
Foi aí que Mariza repetiu para o homem de azul que visitava sua casa naquele dia: 
- Não quero ouvir nada mais. Quero inclusive que leve o tapete, os livros e tudo que traz toda essa poeira. Martin acreditou que fosse loucura ser expulso assim de tanto tempo em que poderiam construir para espantar a todos.
Mariza achou que seria imprudência permanecer assim em tanto tempo em que se espanta todo mundo.
Julia achou que seria loucura continuar tanto tempo só. Mas ninguém pôde perguntar nada a Julia, ela não diria, também não seria ouvida.
Os dias nasceram a seguir. 
Tudo era calado outra vez e nada mais espantava. Mariza continuava só quando todos achavam que assim estava. Quando falava, era possível entender seu interlocutor, vê-lo, às vezes, e estar seguros de que a loucura não é ali assim tão palpável como naquela noite.
Mariza não viveu feliz. Ninguém viveu feliz, talvez, mas todos continuaram livres.

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