09 outubro, 2010

Matança

Saiu devagar, desceu as escadas como quem corre, bateu a porta e virou as costas para o mundo do abandono. Abandono escolhido, desses de fazer nada em hora nenhuma e perder a virtude que um dia imaginou ter. Tudo bem assim no passado. 
Não era um dia especial, sequer um dia qualquer, era um dia igual a qualquer outro. Não há nada de novo, tudo é revisitado. 
Andou bastate e já estava um tanto cansada de mais para as oito da manhã. Sentou e parou de fazer o que tinha que fazer para contemplar o que ia se desfiando à sua volta. 
Ela despelava animais. Na verdade, o nome mais preciso é esfolar, esfolação; para ela, obrigação. No início poderia ser qualquer coisa repugnante ou não, dolorida ou não, então passa a ser indiferente, divertido, e só assim, repugnante mais uma vez. Não havia repugnância no ato em que os bichos gritavam par ao vazio - só há o silêncio. Não havia repulsa em sentir a inocência de cada um daqueles bichos abandonar os corpos, como rajadas de vento, e passar por si, entre o cabelo, a pele, os olhos.
Mas então, contemplou. Contemplou não a paisagem que revestia a manhã, tampouco o pôr-de-sol, menos ainda o sangue que formava poças em que pisava e já era quase poça também. Contemplou o perder-se. E chorou. As lágrimas lavavam os cabelos grudados por entre as manhãs deixadas pra trás, e chorou também pelas mãos ensanguentadas, pelos pés vermelhos e pelas roupas sujas. Não chorou por mais nada. E foi um tempo curto apenas. 
Secou as lágrimas, arrancou as pele de alguns ainda que ali estavam e já não tinham mais escolha. Cansou de matar. Não por matar e olhar-lhes em olhos sem vida e por ouvir seus gritos e por sentir os escrementos de resto de vida de bicho esfolado ali. Cansou e só.
Terminou o dia. Lavou os instrumentos, limpou o terreno, lavou as mãos e trocou a roupa. Caminhou até a porta e antes que fechasse tudo, depois de ter recolhido o lixo e ter apagado as luzes, abriu todas as gaiolas que faltavam. Esperou sem paciência que todos saíssem, trancou a porta e levou a chave.
Chegando em casa, jogou as feramentas em baixo da cama e deitou. Bruços. Quase sufocando com o próprio peso, dormiu a tarde e a noite inteira, sendo que a manhã era  parte clara do sono.
Sonhou talvez, não se lembra.
Dia novo, rotina nova; saiu devagar, desceu as escadas como quem corre, bateu a porta e virou as costas para o mundo do abandono. E acontecia nada em hora nenhuma. Já não sabia perder a virtude que um dia imaginou ter. Tudo bem assim no presente.
Todos os dias, ao chegar, confere as ferramentas em baixo da cama, cai de bruços e dorme a noite e parte da manhã. Ninguém sabe o que há de acontecer quando os olhos interpelarem a manhã outra vez.

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