01 julho, 2010

Memória


Lembro com um pouco de sofrimento os dias de minha infância. Não eram dos melhores. Pelo menos não eram para tudo o que eu pensava ser perfeito na época, ou, melhor que a infanciazinha mais ou menos que eu tinha.
Hoje tenho vontade de rir. Não só de mim e de meu pensamento depressivo e ingrato, mas da época toda. E são dois risos diferentes. O primeiro deles é quase um choro que é aquele que se rir com gosto e saudade. Tenho saudades do tempo em que toda a minha preocupação era agradar aos desejos de uma cabeça em formação e totalmente perdida girando no espaço. O quão cruel pode ser a formação de um ser girando espaços desconhecidos, perigosos e necessários.
Minha infância não teve nada de perigoso. Não aparentemente e esse era o perigo maior. Por que, além das drogas, do sexo e das companhias – os fantasmas de meus pais – , estava um sentimento que cresce e toma posse de você. Por maior que sejam suas experiências mais tarde, seu conhecimento mais tarde, sua vida formada, é um alicerce podre e ameaçador. A descrença em si.
Quando se vive em uma cidade do interior; quando se cresce em qualquer lugar, o você acaba sendo um microcosmo do espaço à sua volta. Irecê, na minha época, foi uma terra de três futuros: o alcançado, o decaído e, então, o sonhado. Mas não sonhado com a devida necessidade. Ele parece morto ainda hoje.
As perspectivas de futuro que havia traziam um quê de futurismo do tipo “as coisas vão dar certo, vão melhorar, é a conjuntura do país que propicia a melhora”, então, por conta disso, os empréstimos eram fáceis, as plantações acariciadas com mais que sementes, os filhos mais felizes e uns mais felizes que outros. Que a maioria, porque isso de futuro era, de fato,  para poucos.
Hoje os homens cresceram, as mulheres também, as crianças continuam lá, mas o futuro quer ir embora. Os jovens em minha cidade não vivem lá. Estão em outros campos, em outras conjunturas, buscando algo - longe das terras vermelhas, longe das sementes, sempre as mesmas - brilhante. Procuram o aviso com luzes e néon, embriagado e sorridente. Como um tolo.
Há o meu segundo riso. Quando rio de tudo isso. Pobres de nós todos que não sabemos que somos ainda terra de monocultura, desgastada, corrigida em ph, adubada com merda de vaca ou com essas modernidades tóxicas, agro, férteis, elitizantes. Somos terra arrasada ainda pela promessa. E, claro, pelas experiências infantes inconscientes e alheias à conjuntura nacional.
Moro algum tempo longe de Irecê. Tudo o que eu disse pode não passar de simples leviandade e lembrança recortada de infância esquecida ou intermitente. Tudo o que eu disse sobre Irecê perde a validade. Basta um discurso de qualquer um dos que vivem, ou voltem ao pó de quando saíram de lá. E tudo isso ainda que nesses últimos traços pode ser verdade, pode também ser mentira.
Realidade é construção. Plantação, que melhor nos cai bem. Mas não é diferente de qualquer invenção que eu tenha de minha lembrança. A memória é fascinante.
Eu sou ainda um microcosmo da terra que nasci. Futuro tripartido, monocultura de alma e povo que vive rasgando as possibilidades, as secas, as perdas de safra... agarrados à esperança de contínuo luminoso para uma terra de fronteiras. Fronteiras individuais.
Lembro: tudo isso aí não passa de memória. Ela e todos seus mecanismos mesquinhos e obscuros de formação. E eu não chamaria isso de niilismo, de amargura, de realismo, verdade ou sabe-se lá o quê. Eu chamo de memória.
Entretanto, gostaria mesmo era de voltar a ser criança. Viver essas coisas, mas tudo diferente. Rio muito em dias assim.

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