18 setembro, 2010

Jornada

Fácil é. Mas essa não é a pergunta original. Não é assim que se constrói qualquer coisa em que se queira andar. Pisar o chão todos os dias não é das tarefas difíceis, é deixá-lo pisar de volta. Assim,  o acordar também não é estranho, tampouco o dia ou as coisas que acontecem sem previsão. Por isso as árvores apenas passam uma a uma e cada vez mais rápido pela janela enquanto olho os outros que seguem sem perguntar qualquer coisa também. Tão dolorido isso.

Naquele dia foi assim. O mundo invadiu a minha janela de movimento e apoiou-se em meu colo, olhou minha cara e perguntou o qual seria o meu pedido pra àquela hora, afinal, não se ocupa uma mesa sem que peça nada.

Havia necessidade de tudo: queria uma música e antes que o senhor anotasse o pedido, um outro carregando um fole, grande, entrou pela porta que eu não via tocando algo que não identificava. Não era das músicas que costumo ouvir, não era das que os outros ouvem; era música, no entanto, e as notas caíam em meu prato tilintando e respingando sopa em meu colo, minha roupa, branca ou acinzentada: tinha sopa pela gravata, pelo nó da garganta, pelo colete. Quando a música caía, eu não as ouvia mais e o senhor continuava abrindo e fechando os braços, rasgando o espaço com a navalha sanfonada.Havia duas senhoras em minha frente, na mesa da frente, não me olhavam, sequer moviam o pescoço, ou qualquer dos ossos ou músculos, para qualquer lado. Pareciam conversar, mas não conversavam. Terminei a sopa que esfriava - agora, cantava - limpei com o guardanapo num ritual inútil e sem propósito. Deveria mesmo era limpar a mim por inteiro.

Observei a moça pela janela. Ela parou um pouco, olhou pra mim e gesticulou coisas incompreensíveis. Era bonita de fato; não tinha olhos muito grandes, mas serviam ainda, nem uma forma de rosto que me agradasse, mas era um rosto, enfim, tampouco seu corpo era desses que se desenham no ar com os olhos cheios de libido, mas era um corpo e a trazia até a janela. Considerando os gestos que fazia, não deveria ser das mais inteligentes também, mas era uma moça. As moças não estão para ser julgadas: são cortejáveis, sempre.

Presumi que não falasse comigo, mas a olhava como se fosse; era tão bonito o gesto de falar e esforçar-se para o meu entendimento nulo. Já não era quase nada, só contemplação.

A música escorria pelas cadeiras em todo o salão agora. Desciam como minúsculas pontes pretas de mim e o tempo que não cabia no que eu via. Ouvir, já era improvável ali. Tomando o espaço por completo, as notas desciam em cima das mesas, nos homens que ali, estavam pelo balcão. As senhoras, engraçado, imóveis, acumulavam em seus chapéus notas e mais notas. Esse as protegia, mas, agora, já podiam sentir o peso da verdadeira sinfonia que se formara sobre si.

Havia figuras estranhas para uma manhã de terça-feira ali no bar. Não que fossem estranhos a um bar, ou àquele especificamente, mas um caubói, uma dama com buquê e um prisioneiro fardado e em farda para esse ofício, por que não, que tomavam em seus copos longos e adequados algo que não sabia. Não deveriam estar ali naquela terça. Entretanto, não perguntei sobre aquilo. Nada me incomodava mais que aquele frio.Foi então que me virei para a janela mais uma vez e ainda estava lá a moça e seus gestos. Indizíveis ainda. Cansei de estar parado. Sacudi a música de mim e caminhei para a porta. Deveria ir, sair. Foi aí que o tempo veio atrás de mim, em disparada, com a nota na mão e a bandeja embaixo do braço.

Quando passei pelas senhoras, a que estava de azul e chapéu com bordados segurou meu pulso com força. Não me atrevi a olhar para ela, tudo naquele lugar já me afligia, não era só a moça que eu não compreendia, eram os personagens, essas velhas silenciosas e imóveis, a música que se desmancha em coisa que não tem nome e até mesmo o garçom que obriga ao pedido e não te deixa sair em seguida. A voz da senhora era rouca, havia vida ali, então, e me disse coisas, a velha. Coisas que não me lembro de dizer agora.

Abri os olhos por fim. Tinha que descer, era meu ponto, outro desses quem sabe por quantas voltas e descanso passará? A rua, sempre deserta, estava só; quando segui até onde esta se encontrava com a outra. Minha patroa espera por mim. São anos de dias tímidos e similares uns aos outros. Pela minha janela não há moças, nem velhas, tampouco a música que não sai de mim (era uma mancha que escorria a gravada, manchava o colete e se misturava com a camisa). Pela minha janela há apenas árvores que passam e meninos que brincam, em dia de feira, com os pés no chão e a barriga virada pra o mundo inteiro ver.

Cheguei. E esse é só mais um dia em meu cartão de ponto.

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